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9° dia: Brado Retumbante - Nas Montanhas de Sauerland

Atualizado: 24 de ago. de 2021

Parque da água - museu ao ar livre de Hagen

Epscheid, 15/06/2018 sexta-feira


Dormimos profundamente e acordamos cedo. A casa estava silenciosa, então ficamos enrolando para descer pro café da manhã. O café da manhã foi longo, na mesa estavam todos presentes e rolou uma conversa animada. Gudrun, minha prima ruiva, estava de folga e viria mais tarde para passar o dia conosco. O gato mourisco ficou sentado entre Gilson e eu no banco em L, ele era bem sério, mas as vezes ficava nos cutucando. Gilson ficou se entretendo com o gato, brincando e fazendo carinho, minha tia o alertou para tomar cuidado, pois as vezes ele mordia. Enquanto eu pensava que nunca tinha visto um gato morder alguém, o danadinho mordeu a mão do Gilson num impulso furioso e depois se aninhou gateando mimosamente no colo dele, numa mistura heterogênea de ser selvagem e doméstico. Enquanto desinfetavam o ferimento, minha tia explicava que aquela raça de gato era semi-selvagem, um gato nativo da Alemanha domesticado a pouco tempo, por isso ainda mantinha alguns ímpetos mal contidos.


Depois do café, fomos para o jardim da frente para verificar o filtro de ar da moto, mas o conjunto da caixa do filtro de ar estava tão embutido na estrutura da moto e com espaço tão apertado para movimentação que ficou difícil com a mão machucada e o frio ao ar livre tirar a caixa para ver se estava ou não suja conforme a suspeita do Gilson. Já tínhamos devolvido todos os parafusos e estávamos conversando sobre a manutenção quando Hilla chegou e nos convidou para uma caminhada pelo bosque.


Os alemães tem necessidade de sair para o ar livre sempre que o clima não os impede. Não importa se está ventando, chovendo, frio ou calor. Ali, em Epscheid, o melhor programa gratuito ao ar livre era subir a colina, de onde se tinha uma ampla vista sobre a paisagem ondulada movimentada pelo vento. Depois percorrer a estrada rural que margeia o campo de Raps (colza) e o reflorestamento na borda da encosta. Seguir descendo pela trilha escura entre Pinnus altíssimos ouvindo as histórias de vivências infantis no pós guerra e cantar "pela estrada afora eu vou tão sozinha...", sair do reflorestamento e terminar a trilha por um pequeno trecho de floresta mista, onde a luz natural e os sons são complemente diferentes da penumbra fria e silenciosa do reflorestamento, até chegar ao vale. Algumas árvores na beira do caminho haviam sido marcadas com tinta indicando que seriam removidas por oferecerem perigo aos passantes. Lá embaixo havia poucas casas branquinhas no meio daquela profusão de verde e uma estrada asfaltada que volta a subir a colina num traçado curvo insuficiente para amenizar a inclinação. De volta ao topo, a estrada corta o que a 30 anos foi pasto de gado leiteiro onde, naquela época, presenciei o namoro a distância de uma vaca e um touro: separados pelas cercas e pela estrada, chamavam-se apaixonadamente, mas a comovente preferência de um pelo outro não era possível, pois ela estava confinada numa área cercada, junto com companheiras leiteiras, e ele estava destinado a cobrir outra vaca que pastava desinteressada mais adiante dividindo com ele o mesmo cercado.



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Quando retornamos a casa de Margarete, Gudrun já nos esperava para passear no Museu ao Ar Livre de Hagen. Trata-se de uma aldeia-museu que reproduz uma aldeia do período pré-revolução industrial. Cada construção, desmontada na região e remontada ali fielmente à técnica original, é o local de uma atividade profissional daquele período. Há o setor metal-mecânico, o têxtil, o de papel, a cervejaria, o ourives, a padaria, a carpintaria, todas atividades que evoluíram na revolução industrial e se tornaram fortes nessa região. Naquele dia estavam presentes alguns artesãos, que ainda mantém os saberes das técnicas tradicionais, fazendo a demonstração desses processos. Havia um jovem alemão tímido na produção de escovas, um alemão de meia idade ourives, um alemão simpático e empolgado na estamparia metálica, um português vaidoso na conformação mecânica de objetos decorativos, um escocês descolado na forja de objetos utilitários e um alemão de brado retumbante na confecção de foices. Todas as demonstrações foram interessantíssimas e os mestres muito didáticos. O interior das construções é muito escuro, e aquele do brado retumbante pediu que se desligassem flashs das câmeras porque durante a demonstração o seu brilho poderia ofuscá-lo podendo provocar algum acidente de trabalho. Desligamos o Flash para prestar atenção ao que viria. Quando ele iniciou a demonstração da forja da foice, entrou um grupo de aposentados e começaram logo a fotografar sem saber que havia restrição ao uso de flash. Foi então que o silêncio foi estraçalhado pela ordem retumbante do mestre que olhava na direção do Gilson e vociferando: "Blitzlicht Aus!!!!". Todos se assustaram, mas mantiveram compostura. Depois de me recuperar do susto, entendi que ele pensou que tinha sido um de nós dois, e quando ele percebeu que o flash tinha vindo da direção oposta de onde estávamos, ficou envergonhado, mas não disse mais nada. Deixei o tolo com sua própria vergonha e fui procurar Gilson que saiu puto com o comportamento que tinha acabado de presenciar. Fiquei imaginando um comportamento semelhante em tempos de guerra, em campos de concentração, foi uma associação inevitável...


Com exceção desse triste episódio, o passeio foi muito bom. Tem muito para se ver e aprender aí, o suficiente para passar o dia inteiro. O trajeto não é fixo, e fica a escolha de cada um, a ambientação da aldeia num vale arborizado é muito agradável, vimos até um cervo pastando nas bordas do bosque. Há alguns parquinhos infantis para as crianças e adultos, tem restaurante moderno onde é possível almoçar e realizar eventos, e a padaria e confeitaria onde é possível comer e comprar pães, sem esquecer da cervejaria artesanal com barzinho em funcionamento. Queríamos conhecer a cervejaria, mas Gudrun estava preocupada, tinha recebido a notícia que Kalli não estava bem e precisava ser medicado. Interrompemos o passeio um pouco mais cedo. Na saída, a loja de presentes tem ótimos produtos a venda, a maioria produzidas ali mesmo no museu. Compramos alguns presentes e Pumpernickelbrot (pão de centeio e melado integral em lata).



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O carrinho vermelho subia a estradinha que cortava caminho pela floresta de coníferas. Uma subida, uma longa descida, mais um pouco pelo plano e chegamos à casa com um pavimento, sótão e porão, localizada a beira de uma estrada secundária que liga um pequeno povoado a outro. Era a casa de Gudrun, que fica quase o dia todo vazia. Ela nos mostrou tudo, o que gostava e o que ainda queria mudar. Levou- nos ao porão, tirou duas garrafas de um dos muitos engradados que estavam ali, abriu a porta para o jardim e nos colocou sentadinhos ao sol com um copo de cerveja sem álcool na mão. "São de Volker, ele só bebe dessa aí". Volker é marido de Gudrun, que ainda não conhecíamos. Ficamos ali bebendo cerveja que era de fato muito boa, e mudou completamente a imagem que Gilson fazia de cerveja sem álcool. Sentados ao sol do final da tarde, contemplando as crianças jogando futebol no Camping ao lado, esperamos Gudrun trocar de roupa para irmos ao encontro de Kalli.


Kalli mora no topo da montanha numa fazenda de gado leiteiro em decadência. Como fonte extra de renda a proprietária oferece o espaço como haras. Gudrun sempre gostou de cavalos. Três vezes por semana ela vem aqui para cuidar de Kalli, o cavalo branco titular da equipe de acrobacias formada por três adolescentes e ele deve carregar esse pacote sacolejante com confiança e segurança. Ela o alimenta, limpa a cocheira, limpa os cascos e o leva para fazer exercícios. Em troca ela ganha o direito de cavalgá-lo. Kalli é magnífico, seus músculos emanam energia, mas seus lindos olhos estão apagados. Ele sente dor na articulação do tornozelo e está mancando levemente. Recebe com resistência a dose de anti-inflamatório, que engole com desgosto, depois ganha como recompensa uma fatia de pão preto torrado que ele parece gostar muito. Ele é incrivelmente forte, ninguém seria capaz de impedir seu protesto, mas ele é dócil e aceita tudo: o remédio para sua perna, a limpeza do casco, o feno sem gosto. Claro, ele foi domado, espero inocentemente que a doma não tenham lhe quebrado a alma. Ficou mais animado quando saiu do estábulo e pareceu simpatizar com o Gilson que segurava a rédea e se deixou afagar na testa enquanto Gudrun limpava os cascos. Olhou pra mim, e deve ter me confundido com uma das meninas acrobatas, e deixou que eu, num impulso de empatia, tocasse meu rosto no dele. Gudrun disse depois que nunca conseguiu fazer isso, e pareceu um pouco frustrada com a constatação. Depois de terminar a limpeza dos cascos, recebemos a incumbência de levá-lo para pastar um pouco mais acima, na beira da estrada. "mas segura firme e dá um puxão na rédea se ele ficar muito folgado." Gilson não fez nada disso, Kali sabia muito bem o que queria comer e nos levou para lá, estava completamente a vontade, comia um tufo de capim e dava um passo a frente. Já tínhamos andado por 10 metros nesse ritmo quando Gudrun chegou e observou que o cavalo estava se sentindo seguro e tranquilo na nossa companhia, apontando para seu pênis completamente relaxado e exposto. Ela tomou as rédeas e deu um puxão, imediatamente Kalli se contraiu e guardou sua genitália. Pobre Kalli, não é livre.


Livres também não são os bezerros que chamavam incansavelmente no estábulo ao lado da baia de Kalli. A menina, filha da proprietária, esperava a hora certa de levar os baldes de leite para alimentar os bezerros. Ela reproduzia os trabalhos e os comandos que aprendeu com os adultos com energia, mas sua expressão ao olhar para os bezerros era de um conflito oculto. Era o cruzamento de olhares infantis, de um lado uma criança humana e do outro uma criança bovina. Vivendo na cidade esqueço que essas coisas que já fizeram parte da minha infância e percebo com tristeza que está na hora de dar mais um passo no veganismo. Quando o leite chegou os bezerros o beberam avidamente, nesse momento chegou um cachorrão dócil, obeso, lerdo e pesado, que bebeu também dois litros de leite separado para ele...



Kalli precisava de repouso, então foi levado de volta a sua baia. A menina nos convidou para colher cerejas, enquanto Gudrun terminava o trabalho. Ali, no pasto dos pôneis, a introspecção cedeu lugar para alegria de ver a menina brincar com os pôneis e os burros, um deles, que estava na muda de pelos, vinha se coçar na gente, nos seguindo onde quer que fôssemos. O cachorrão obeso não conseguiu ultrapassar o muro de pedras e ficou sentado olhando de longe. As árvores estavam carregadas de cerejas maduras, comemos muitas, estavam deliciosas, apesar das mãos sujas do trabalho com os animais, e ajudamos a colher outras tantas para a proprietária que faria compotas e geleias mais tarde em sua cozinha. Quando Gudrun veio a nosso encontro ainda ficamos algum tempo conversando e colhendo frutas, mas a penumbra do fim do dia se intensificava e nos despedimos e dali Gudrun nos levou de volta a Epscheid onde nos aguardavam para jantar uma deliciosa macarronada vegetariana.


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O DIA EM NÚMEROS:


DESLOCAMENTO:

  • Distância percorrida = 40 km

DESPESAS:

  • Combustível € 0,00

  • Estacionamento € 0,00

  • Transporte público € 0,00

  • Hospedagem € 0,00

  • Alimentação € 0,00

  • Ingressos € 14,00

  • Moto (peças e serviço) € 0,00

  • Presentes € 17,00

  • Outros € 0,00

  • TOTAL € 31,00


SERVIÇO:

  • Museu ao ar livre de Hagen (Museu de Artesanato e Técnicas do Estado da Vestfália): LWL Freilichtmuseum Hagen - Westfälisches Landesmuseum für Handwerk und Technick www.lwl-freilichtmuseum-hagen.de

 

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